O Primeiro dia de
férias por Laura Trachtenberg Hauser
Bom, o primeiro dia de
férias! Genial para a maioria das pessoas, fim dos estudos, do
trabalho, teoricamente de tudo que nos incomoda, e nos afasta da
plenitude pessoal e humana... pois é, pra mim as coisas funcionam de
maneira um pouco diferente. Para explicar isso tenho que falar um
pouco mais sobre mim.
Estudo história na
Sorbonne, porque digo especificamente a Sorbonne, bom talvez para me
gabar um pouco, e principalmente para me proteger de
contra-argumentos quando digo que meu curso é imensamente trabalhos,
demanda horas de estudo e leitura, o que serve para justificar todas
minhas neuroses, ou talvez tampá-las com a peneira...
Como acabei na
Sorbonne, sendo que sou brasileira... morei durante um ano na França
em 2009, gostei muito do país e, de volta à São Paulo, detestava a
faculdade de jornalismo... Alors, resolvi me inscrever para a
Université Paris 1... fui aceita, e fui!
Durante os oito meses
de curso anuais, estudamos que nem cavalos, des de o Império Romano,
até a História Moderna da Transilvânia (sim, a Transilvânia
existe... sim, o personagem do Conde Drácula foi inspirado num
antigo « senhor feodal » da região)- começamos a ver
que estamos realmente na merde quando pesquisamos algo no Google e a
unica resposta é « 0 resultados », aí a solução é se
jogar nas bibliotecas, lídar com os seres estranhos que vivem por lá
e se alimentam de livros, nunca falam alto, são sempre pálidos e
vivem se esgueirando entre as prateleiras, com o tempo você acaba
virando um deles...
E após esses oito
meses de gritos de desespero nas cavernas mais profundas, procurando
a única edição do livro sobre a política construtiva medieval de
Milão nos séculos XIV e XV, sim isso existe... O ano de repente
acaba.
Aí
acordo num dia de feriado em Paris, ou seja: tudo fechado, graças a
politica de bem estar social francês, Merci la France! E me deparo
com o dia inteiro sem absolutamente nenhuma tarefa. O primeiro
sentimento é de alívio, de missão comprida, momentos
megalomaníacos com direito a gargalhadas satânicas por ter passado
em História Medieval... num segundo momento um vazio...
E não há nada melhor
para ocupar um vazio que uma boa preocupação, logo vi que o meu
aluguel do mês não havia chegado ao proprietário por culpa do
banco, algo facilmente resolvível quando não estamos em um dia de
feriado na França, mas mesmo assim resolvo mandar cerca de 10
e-mails para o banco, para a agência de apartamentos, para minha
gerente do bando e para a secretária da agência de apartamentos,
uma mulher de 40 anos, não casada, francesa, infeliz com sua vida
amorosa... que já passou faz tempo do seu estado balzaquiano.
Tendo isso feito, são
11h30 da manhã e ainda tenho meu dia inteiro pela frente pronto para
ser arruinado, a pergunta é: como fazê-lo¿ sim, pois isso é um
talento, é preciso dedicação, força de vontade e aptidão...
Depois de meia hora
andando em círculos pelo meu chateau de 17m², no quinto
andar sem elevador, com o teto inclinado- bom, sempre posso dizer que
moro numa cobertura em Paris... Sabe aqueles prédios centenários
charmosíssimos parisienses, que sempre aparecem nos filmes franceses
que nós de humanas veneramos e sempre nos imaginamos morando num
desses, tomando uma taça de vinho e escrevendo nossos pensamentos em
um moleskine antigo, Pois é, não funciona bem assim... primeiro que
até você carregar a garrafa de vinho mais suas compras de
supermercado já não é tão poético...
Mas voltando ao dia de
férias, coloquei a roupa pra lavar e comecei a arrumar o
apartamento, imundo depois de duas semanas de exames finais, época
em que sobrevivemos a base de comida congelada, dormindo em cima dos
livros e fotossíntese a base da luz do computador... real story...
Não contente, lembrei
que tinha uma amiga, estudante de história da arte que teria ainda
uma prova de história antiga, e aí vem a parte que mais me
envergonho: mandei uma mensagem para ela perguntando se não queria
ajuda para estudar... estou até sentindo sua reação após ler essa
frase, mas tenha sempre em mente doeu mais em mim do que em você...
Estudei tudo de novo no meu primeiro dia de férias, toda dinastia
julio-claudiana romana e os sucessores de Alexandre, o Grande...
quando estávamos dando um tempo tomando uma cervejinha meu celular
da dois pequenos toques, era a agenda... tinha esquecido
completamente que tinha análise naquela tarde... não é surpresa,
depois de tudo isso, que eu faça análise...
Expulsando minha amiga
de casa fui correndo até minha psicanalista como estando atrasada
para qualquer compromisso, disposta a chegar a tempo cumprir o
horário e voltar pra casa. Cheguei a tempo sentei no sofá do
consultório e... nada, silêncio... mais nada... um branco, um
vazio- aquilo não era mais um compromisso... não conseguia saber o
que eu sentia, nem que pensamentos me passavam pela cabeça, me deu
uma tensão por não conseguir fala nada, como estar falhando numa
prova, depois angustia por não conseguir nem saber o que estava
sentindo fiquei olhando para o teto, e para o gato da minha analisa
que roncava profundamente (a falta de interesse dele também não
ajudou)... ela disse:
- “o tempo acabou”
-hoje eu não consegui
-faz parte – ela
concluiu com um sorriso acalentador.
Fui embora, sentei num
banco por uma meia hora, pensando no que tinha feito com o meu dia,
dessa vez a conjugação do verbo não poderia ser outra: o que eu
fiz com meu dia... o que me faz pensar que a conjugação quase nunca
é outra, na maior parte do tempo somos responsáveis por nossos
dias, todos os que compõem a nossa vida...
Pena que não paramos
todos os dias meia hora num banco de rua pra pensar como foi o nosso
dia, para fazer uma avaliação sincera dos acontecimentos, e não
apenas nos nossos dias des férias, que pena dever esperar os
parênteses, para poder definir o curso do texto... Por quê não
percebemos todas as desculpas que nos damos para continuar nossa vida
de formiga em campo de trabalho forçado¿ Por quê se questionar
ficou tão difícil¿
Só sei que às vezes
os silêncios são mais úteis que as respostas diretas e seguras,
principalmente sobre as perguntas que não ficam guardadas em livros
de bibliotecas subterrâneas, nem em oráculos modernos via internet
e, muito menos, em teses de doutorado. O problema não é arruinar o
primeiro dia de férias, mas deixar de perceber que não percebemos
todos os outros dias...
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